A suavidade como força de mudança
- Selma Bellini
- 7 de mar. de 2023
- 3 min de leitura
Atualizado: 6 de jun. de 2024
O que você pensa quando ouve ou lê a palavra suavidade? Geralmente pensamos em algo que seria mais delicado e até mesmo fraco, certo? Bom, este senso comum é praticamente o oposto do complexo universo da suavidade que a filósofa e psicanalista francesa Anne Dufourmantelle descreve em “Potências da Suavidade”. No trabalho de Anne, a suavidade vai por outros rumos: é um enigma multifacetado com poder de transformação, uma força erótica, complexa e instintiva. Os caminhos que a psicanalista explora não estão no campo do submisso, fraco e romanceado, mas sim no da potência e com várias formas de olhar e viver a suavidade: animalidade, cuidado, potência, inteligência, uma festa dos sentidos, força simbólica, liberdade e tanto mais. Na visão da psicanalista, a potência de metamorfose da própria vida se apoia na suavidade.
Logo na introdução, Anne avisa: “A suavidade é um enigma. (…) É uma potência na medida em que tem seus graus de intensidade, pois é uma força simbólica e tem poder de transformação sobre as coisas e os seres. (…) Se o amor e a alegria têm afinidades essenciais com a suavidade, será porque a infância detém o seu enigma? Porque a suavidade tem uma natureza comum com a infância, mas também a potência. Ela é seu reverso secreto, onde o imaginário encontra o real em um espaço que inclui seu próprio segredo, provocando-nos um assombro do qual nunca nos recuperamos inteiramente.” Eis a porta de entrada de Anne para a suavidade: aceite o enigma e o assombro que vem de não conseguirmos definir a suavidade de uma única e fixa forma.
E Anne nos prova, capítulo após capítulo, que temos muito o que apreender sobre a suavidade: “Sua aparente simplicidade é enganosa. No entanto, sua singularidade sempre foi atestada. Ela é uma passividade ativa que se pode transformar em uma força de resistência simbólica prodigiosa e, como tal, estar ao mesmo tempo no centro do ético e do político”.
Anne também critica a utilização da suavidade como argumento de venda, especialmente do mercado de “bem-estar” e em discursos em que ela acaba virando opressão em soluções de aperfeiçoamento do eu, que desconsideram complexidade e contradições. Na visão dela, o contrário de suavidade não é violência ou brutalidade, "mas sim a falsa suavidade: aquilo que a perverte ao imitá-la".
Para a situação de clínica, Anne coloca a suavidade no centro da escuta, como esse gesto que convida o outro a falar, enquanto o analista tenta “ouvir de outra maneira, correr atrás dos fantasmas”, ao mesmo tempo em que resiste à queixa que se repete. O que existe para além? E então, em algum momento, a suavidade pode aparecer no processo de análise. “Um limite ultrapassado, uma morte atravessada, uma fronteira proibida transposta, toda a vergonha absorvida. É então que ela pode chegar. Ela age, vem embaralhar o encontro. Desviar a fala, quando surge uma verdade imprevisível. Um bálsamo de suavidade se espalha, então. É um estado de graça que não dura. Pouco importa, ele acontecerá. É para momentos como esse que o analista está ali. Ele permitiu a passagem, na sua escuta, daquilo que surgirá entre palavras, entre os signos, nos interstícios de um sonho, de um silêncio, de um medo sussurrado rapidamente. (…) A suavidade vem nos visitar. Não a manipulamos nem a possuímos nunca. É preciso aceitar entrar nas suas marés, percorrer seus caminhos ocos, perder-se para que aconteça algo inédito. Poderíamos dizer que a suavidade se instala nesse espaço tênue, faturável, no qual aquilo que acontece tem o seu consentimento, mas sem que você possa compreendê-lo ou apreendê-lo nas fronteiras do seu antigo eu”.
O livro é pequeno e os capítulos são curtos, mas não é uma leitura rápida ou simples de resumir. A escrita de Anne é por vezes mais poética, outras mais aforística, e isso pode deixar a leitura superficial. Esse é um livro que pede uma leitura mais cuidadosa, com tempo para sublinhar coisas, voltar, ler de novo e ir mastigando com cuidado. Uma frase mais poética, encaixada como um aforismo, pode muito bem guardar contradições e passar por isso correndo, apenas achando a frase bonita, seria um desperdício. Ainda assim, destaco uma frase sobre a suavidade que encerra um dos capítulos: “Da animalidade, ela guarda o instinto, da infância, o enigma, da prece, a tranquilidade, da natureza, a imprevisibilidade, da luz, a luz”.
Infelizmente Anne ainda é pouco traduzida no Brasil, este é apenas um dos dois livros dela que temos em português. Anne morreu aos 53 anos, afogada, quando entrou no mar para salvar duas crianças. Um de seus últimos livros dela, que infelizmente não temos no Brasil, poderia ter o título traduzido para o português como “Elogio do Risco”.
Por
Selma Bellini
Psicóloga
CRP 06-155290
Atendimento Psicológico Adulto
Comentários